segunda-feira, 12 de julho de 2010

O Cineclube e a Laranja

Escrever sobre Stanley Kubrick não é tarefa fácil. Um homem anti-mediático, trabalhador compulsivo, minucioso, um realizador de génio. No entanto, o apontar destas características reflecte, talvez, aquela que define todas as outras: Kubrick era um brilhante jogador de xadrez. Ora, um jogador de xadrez deve saber analisar, antever, agir, de maneira a ter a global visão do jogo a que se dedica. E isto era o que fazia Kubrick em relação aos seus filmes de forma singular.
Para cada novo projecto, longamente amadurecido no recolhimento do seu solar na Inglaterra, Stanley Kubrick procurava novos desafios técnicos que, ao invés de se sobreporem ao tema que importa abordar, como largas vezes acontece, o resultado era o de exponenciar as potencialidades desse tema. É o caso dos efeitos visuais de vanguarda em 2001: A Space Odissey, 1968. Em 1975 utilizou lentes e câmaras modificadas de forma a poder filmar apenas com luz de velas, transmitindo o real ambiente dos salões oitocentistas, no filme Barry Lyndon. Em 1980, a rodagem de Shining foi o "laboratório" de utilização da steadicam, aparelho que permite rápidos movimentos de câmara sem trepidações indesejáveis.
Cedo se tornara fotógrafo da revista Life, ao tirar uma fotografia histórica que lhe valera a profissão: A mágoa de um vendedor de jornais que anunciava a morte do presidente Roosevelt. Na Life, cobre reportagens que são ponto de partida para temas dos seus primeiros filmes, actividade que abraça de forma definitiva pouco tempo depois. Assim, surgem as curtas-metragens Day of the Fight, 1951, The Flying Padre, 1951 e The Seafarers, 1952.
Em 1953 realiza Fear and Desire, primeira longa-metragem, cuja autoria renuncia anos depois. O filme Killer's Kiss, 1955, revela a sua habilidade de manipulação da luz em imagens em movimento, catapultando-o para projectos mais ambiciosos.
The Killing, 1956, leva o realizador para Hollywood, virando para ele os holofotes da notoriedade que o acompanhariam sempre. Todos os novos filmes de Stanley Kubrick eram agora envoltos em grande expectativa.
A justiça e a fraternidade são os temas de Paths of Glory, 1957, filme de guerra em que trabalha com Kirk Douglas, facto que lhe abriria as portas da realização de Spartacus, 1960, produzido e protagonizado por aquele actor.
Lolita, 1962, e Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964, são filmes que lidam com o universo obsessivo masculino, com os impulsos do amor e da guerra, como se se tratasse de um díptico em que "Eros" e "Thanatos" se encontram com a masculinidade; em James Mason obcecado com Lolita e Sterling Hayden com o armamento e o seu uso.
Kubrick explora sempre facetas humanas complexas. No auge da sua carreira, os filmes 2001: A Space Odissey, 1968, e A Clockwork Orange, 1971, reflectem essa tendência. No primeiro, o estabelecimento de contacto com formas de vida extraterrestre é levado a limites que podem ser, afinal, o contacto com o ser interior em cada um de nós. No segundo, a violência está no limite entre o ser individual e a sociedade, manipulando a assistência que passa do ódio à estima pelo protagonista Alexander DeLarge.
Ao exuberante e maravilhoso filme de época que é Barry Lyndon, 1975, e a história da ascensão social do seu protagonista, segue-se a incursão de Kubrick no território do terror e do fantasmagórico. Uma vez mais, os perturbantes acontecimentos que têm lugar no hotel, podem bem ter lugar na mente de um Jack Nicholson que tem neste filme - Shining, 1980 - um dos seus melhores desempenhos.
Full Metal Jacket, 1987, constitúi uma abordagem à Guerra do Vietname, ponto comum entre muitos realizadores norte-americanos. Kubrick procura demonstrar de que forma o treino militar de um combatente pode influir na sua vida, na sua mente, na sua reflexão sobre o terror da guerra.
Quando Eyes Wide Shut, 1999, estreou já o seu realizador não era vivo. A intensidade com que aborda neste filme a vida conjugal e a problemática da confiança, da fidelidade, da traição, levaria ao divórcio do par protagonista, casados na realidade. Nicole Kidman e Tom Cruise dão corpo (e alma) a uma obra controversa, com problemas de classificação etária, com arrojadas cenas de orgias, aflorando também o abuso de menores, o crime sangrento, o consumo de drogas, ou o envolvimento de figuras públicas em escândalos abafados.
O jogador de xadrez fazia, em última análise, aquilo que fazem os melhores realizadores de cinema: uma boa capacidade de observação, assimilação e devolução ao público dos factos. Ao público cabe, por fim, a observação da forma como as ideias de um cineasta lhe chega, para sua maior riqueza. Quem ousará dizer que, quando o Cineclube exibiu A Clockwork Orange (A Laranja Mecânica), não provocou um "boom" de riqueza cinematográfica em muitos espectadores?
Aconteceu isso em 2005, em plena Mostra de Cinema Europeu. Contámos com a presença de um amigo, o Filipe Lopes, crítico de cinema, multi-espectador deste filme e profundo admirador de Stanley Kubrick. Fica um excerto do evento.
LG


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