quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O Mar, a Amizade

Estar longe da pessoa de quem gosta é o que leva o jovem iraquiano Bilal a viajar do Curdistão até Calais, para enfim atravessar o Canal da Mancha e encontrar o seu destino. Bilal encontra o limbo, preso entre a não repatriação por causa da guerra e o estigma da ilegalidade.
Impõe-se a travessia do canal, nem que seja a nado, e assim começa a relação com Simon, professor de natação, em processo de divórcio e preso à solidão. Assim nasce uma amizade impulsionada pela natação e pela necessidade de ter companhia.
Bilal é a lição que nos diz que no Médio Oriente também há seres humanos, pessoas com medos, desejos e emoções, num filme que deixa completamente de lado a problemática da imigração ilegal. Simon representa o auxílio, que surge subitamente na vida, quando parece não haver solução para os problemas em que se tropeça.
Como pano de fundo, o mar, elemento purificador, libertador, objectivo a transpor com esperança num horizonte de paz. Paz encontrada por Simon, que reparando no estranho, no exótico, no Outro, canaliza através de Bilal o seu desperar de dias negros, para uma consciência cívica, fraterna e talvez paterna, talvez nostálgica.
Com uma história a conversar com o nosso interior e a paisagem tranquila do mar ficará o leitor/espectador, últimas imagens de cinema antes das festividades natalícias. Para que se perceba, também, que o Natal é muito mais do que presentes e uma mesa bem composta.
Bom filme com beijinhos e abraços de Boas Festas.
LG

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Tavira, 1917

Passaram quase nove anos desde que a autarquia adquiriu o Cine-Teatro António Pinheiro a particulares, estando anunciada a sua reconversão num espaço mais moderno e apto às práticas das artes do espectáculo, segundo um projecto do arquitecto Júlio Quaresma. Esperamos todos que tal empreendimento melhore as condições do espaço de Tavira por excelência para cinema e teatro, local de culto, de romaria, de convívio e de memórias.
A propósito de memórias e enquanto não chega a data em que vemos desaparecer o actual edifício, propomos a leitura de um texto em que tropeçámos nas lides arquivísticas. Trata-se do artigo que, no jornal tavirense Provincia do Algarve de 28 de Outubro de 1917, nos dá conta da inauguração do antigo Teatro Popular. Acontecimento de extrema importância na cena cultural e social de Tavira, veio substituir o decadente Teatro Tavirense, já encerrado por falta de condições, situado em local menos central da cidade na realidade moderna e empreendedora da época.
O tom de enaltecimento é compreensível, ao fim de duas noites de festa (sim, a inauguração teve duas noites de celebração) que, com a participação de três filhos da terra das lides do espectáculo, foi abrilhantada a um nível superior à actividade artística local.
É nesta altura que se dá o ponto de partida para a exibição apropriada de cinema que nesta sala se faz desde o início, dois dias depois da inauguração. Até então, a projecção de cinema ocorria em barracões de feira montados para o efeito, havendo referências a dois destes espaços na cidade.
Tavira acompanhava assim, sem muita distância, o fenómeno social e cultural que internacionalmente transformava o cinema, justamente de atracção de feira em 7ª Arte, assim baptizado pelo teórico Ricciotto Canudo seis anos antes.
Assim, também neste aspecto, a então direcção do Teatro Popular esteve, consciente ou inconscientemente, de Parabéns!
Eis o artigo, reproduzido com a grafia original.
LG

"Foi revestida do maior brilhantismo a inauguração do Teatro Popular, realisada nas noites de 24 e 25 do corrente.
A nosso ver, ultrapassou a expectativa dos assistentes, pois no seu conjunto essa festa foi deveras atraente e cativante, deixando no espirito de todos a convicção bem patente de que em Tavira se poderá fazer alguma coisa de util e de agradavel, com a boa vontade de todos.
Foram dois os espectaculos, havendo sempre um extraordinario entusiasmo e prazer de se ouvir e apreciar essas notabilidades artisticas, tão conhecidas no nosso país.
A festa de inauguração do Teatro Popular marcou no nosso meio artístico uma página brilhante que jámais será esquecida.
Com isso devem sentir-se orgulhosos os cavalheiros que compõem a direcção do Teatro porque abriu a série dos espectaculos com um brilho desusado no nosso meio.
A récita da noite de 24 começou com uma poesia alusiva ao acto feita pelo nosso colaborador sr. Carlos Trindade e que noutro lugar reproduzimos, recitada pelo professor da Escola de Arte de Representar, o nosso patrício sr. António Pinheiro.
A seguir foi a representação pelo grupo do Teatro Nacional, da comédia em 3 actos Divorciemo-nos. Aos espectadores agradou imenso a afamada companhia, e aplaudiram os laureados artistas, especialmente Palmira Torres, Pato Moniz e Henrique de Albuquerque com prolongadas e entusiásticas salvas de palmas.
Na segunda noite, 25, subiu à scena o conhecido drama em 4 actos João José, sendo igualmente apreciado, destacando-se além de Palmira Torres e Pato Moniz o nosso patrício António Pinheiro.
Os actores Augusto de Melo, Joaquim Roda e Henrique de Albuquerque recitaram vários monólogos e poesias, recebendo fartos aplausos.
O professor sr. J. Henrique dos Santos executou primorosamente solos de violoncelo, recebendo aclamações entusiásticas.
O professor sr. Pavia de Magalhães executou solos de violino obtendo mais um triunfo à sua gloriosa carreira musical. O sr. Pavia de Magalhães que afirma em todas as suas composições o seu muito saber e as suas excelentes qualidades de músico, é muito estimado na sua terra natal.
A sra. D. Branca Pavia de Magalhães, extremosa esposa do sr. Pavia de Magalhães, que foi a nosso ver a rainha da festa, tocou vários trechos ao piano com acompanhamento do sexteto.
O professor sr. António Pinheiro recitou várias poesias recebendo flores e aplausos.
O cantor lírico sr. Alfredo Mascarenhas cantou solos de barítono: na primeira noite o Prólogo da Ópera Palhaços, e na segunda noite uma romanza e um trecho da Opera Barbeiro de Sevilha. O sr. Mascarenhas é um ilustre algarvio e reputado artista e inútil e pleonástico será encarecer os dotes profissionais do laureado cantor que o nosso público justamente distinguiu e ovacionou.
O maestro sr. António Rebelo Neves teve com justiça chamadas especiais colhendo fortes e merecidos aplausos.
Enfim, os dois espectáculos foram esplendidos, duas verdadeiras noites de arte, recebendo os seus interpretantes fartas e quentes palmas, bouquets de flôres e numerosas chamadas.
Foram duas belas noites que jámais se apagarão da memória de quem a elas teve o prazer de assistir, pois deixaram gratas e saudosas recordações.
No final do segundo espectaculo o sr. António Pinheiro, em nome de todos os artistas, agradeceu o acolhimento dispensado à companhia e ao belo sexteto, declarando que este grupo se oferecia para abrilhantar a inauguração da época cinematográfica bem como a valiosa cooperação do cantor lírico sr. Alfredo Mascarenhas, declaração que foi saudada com uma prolongada salva de palmas.
O publico ficou o melhor impressionado possível com estes dois espectaculos não regateando elogios a todos os artistas.
De Faro, Olhão, Vila Rial, Loulé e Albufeira veio grande numero de pessoas assistir aos espectaculos.
É digna de todos os elogios a direcção do Teatro srs. Manuel Pires Faleiro, António do Nascimento Teixeira, João Pedro Maldonado e Eduardo Felix Franco, que nos proporcionou duas noites de arte.
Agradecemos à ilustre direcção a amabilidade da oferta dos dois bilhetes para estes espectaculos.
A inauguração da época cinematografica começou ontem, sabado, com o emocionante drama de Erneste Zaconni O emigrante, da série de Ouro.
Hoje há nova sessão cinematografica com a esplendida fita em 4 partes também da série de ouro, intitulada Caím."

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Cinema Português 5: António Campos

Caso raro (para não dizer único) do cinema português, António Campos é o protótipo de realizador que segue a via do cinema documental, não obstante ser uma escolha frequente dos nossos cineastas por impossibilidade de rodar ficções, fenómeno que atravessa a obra de muitos casos no nosso país.
Evidentemente, está fora de questão a qualidade do cinema de António Campos, um cineasta amador de perfil e craveira profissionais. Da escola de Leiria onde trabalhava até à Fundação Calouste Gulbenkian, o seu cinema é marcado por um apego ao emprego, âncora para a sua vida de escassos recursos. É em Leiria que roda as suas primeiras obras, depois de muitos filmes de família que preferia não adicionar à sua filmografia.
O Senhor e Um Tesoiro, ainda na década de 50, são testemunhos de dois aspectos. Primeiro, o de uma forte marca deixada na sua vida pela experiência de convívio com o mar (como aliás será constante ao longo da sua obra), no olhar para um caso de vida de dificuldades sociais e humanas, ao filmar Um Tesoiro na Praia da Vieira. Em segundo lugar, filmado (nos então) arredores da cidade de Leiria, a linguagem cinematográfica que foi capaz de construir desde a primeira obra, através da montagem paralela e até uma sugestão da "eisensteiniana" montagem de atracções, ao filmar O Senhor. Neste pequeno filme, o nascimento de uma nova vida é pontuado ritmicamente pelo girar das pás de um moinho de vento e da respectiva moagem do cereal.
O cineasta Paulo Rocha foi quem primeiro reparou e apostou neste cineasta que muito trabalhou a etno-ficção por si designada. A sua riqueza provém do facto de se colocar modestamente ao nível do objecto filmado, desprezando uma atitude superior, erro em que muitos documentaristas teimam em cair.
Este aspecto é válido, tanto para os vários documentários de carácter etnográfico que rodou, como também é verdade no caso da sua longa-metragem Terra Fria, 1992, filme em que as "profundezas" das serras trasmontanas e aqueles que elas escondem não deixam de constituir uma abordagem de carácter etnográfico.
É com esta atitude que lhe é possível filmar, em 16 mm, o documentário Almadraba Atuneira, na antiga Ilha da Abóbora em Cabanas de Tavira. Em vários exemplos que se podem apontar de registo cinematográfico da pesca do atum, nenhuma delas tem a profundeza do filme de António Campos. Nenhuma delas foca tão honestamente a árdua labuta que antecede a deita de uma armação ou a própria deita.
Da mesma forma, António Campos foi o único capaz de observar pessoalmente os pescadores e o seu lado privado, como demonstram o olhar sobre as bagagens das famílias, com colchões, camas de grades desmanchadas ou a máquina de costura. Entra na intimidade do gesto, do pescador que ao colo carrega a mulher ou o bébé, à idosa que costura na penumbra da habitação.
Um filme simbólico para Tavira e sobretudo para Cabanas, um hino aos pescadores da Abóbora, a uma actividade desaparecida, ao ciclo da vida, acompanhado pela Sagração da Primavera de Igor Stravinsky.
Foi o primeiro filme "a sério" de António Campos, o mais honesto dos documentaristas portugueses.
LG
Filmografia:
Um Tesoiro, 1958
O Senhor, 1959
Leiria 1960, 1960
A Almadraba Atuneira, 1961
Exposição Comemorativa do Nascimento de Debussy, 1962
A Arte Portuguesa Contemporânea, 1963
Obras da Gulbenkian - 1ª Fase das Obras, Desaterro Muro Periférico, Parque de Estacionamento, 1963
Exposição de Instrumentos Musicais Populares Portugueses, 1964
La Fille Mal Gardée, 1964
Obras da Gulbenkian - 2ª Fase das Obras Construção do Museu, 1964
Obras da Gulbenkian - 2ª Fase das Obras Construção do Auditório, 1964
A Invenção do Amor, 1965
Ouros do Peru, 1965
Retratos dos das Margens do Rio Lis, 1965
Um Século de Pintura Francesa, 1965
Arte do Índio Brasileiro, 1966
Chagall - Breve a Lua, Lua Cheia, Vai Aparecer, 1966
Mudar de Vida, 1966, Paulo Rocha (Assistente de Realização)
Colagem, 1967
Construção do Centro de Biologia de Oeiras da Fundação Calouste Gulbenkian, 1967
Arte Portuguesa - Do Naturalismo aos Nossos Dias, 1968
Entrega de um Busto de Luís de Camões, 1968
O Principezinho, 1968
Obras da Gulbenkian - 2ª Fase das Obras, Construção da Sede, 1969
Recordando - Obras de Construção da Sede, do Museu e do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, 1969
Museu da Gulbenkian, 1970
Raul Lino, 1970
Arte Francesa Depois de 1950, 1971
Vilarinho das Furnas, 1971
Portugal e a Pérsia -Exposição Integrada no Âmbito das Comemorações do 2500 Aniversário da Fundação da Monarquia no Irão, 1972
Rodin, 1973
Falamos de Rio de Onor, 1974
A Festa, 1975
Gente da Praia da Vieira, 1975
Património Arquitectónico Português, 1976
Ex-Votos Portugueses, 1977
Histórias Selvagens, 1978
À Descoberta de Leiria, 1987
Terra Fria, 1992
A Tremonha de Cristal, 1993

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

101 Primaveras

Já não é de hoje, mas é de assinalar a efeméride. No momento em que comemora 101 anos, no último dia 11 de Dezembro, Manoel de Oliveira prepara o filme O Estranho Caso de Angélica, com rodagem prevista para arrancar em Março de 2010.
Em jeito de Parabéns, fica a já longa filmografia, tão completa quanto é possível estabelecer. Quanto ao resto, parece-me que é ainda muito cedo para comentar. A História se encarregará de colocar Mestre Oliveira no seu devido lugar (seja ele qual for) pois, acreditem, muitas vão ser ainda as considerações tecidas sobre a sua obra e muitas as descobertas. Mas essas são coisas que ao futuro pertencem.
Está à vista que o facto de se comemorar um século de vida a fazer filmes não significa ( e contudo parecia ser um sintoma, há um ano atrás), nenhum ponto de chegada, muito menos para o mais antigo realizador em exercício.
Eis os filmes. Exceptuando os casos assinalados, todos são obras de ficção e de sua autoria.
LG
Fátima Milagrosa, Rino Lupo, 1928 (actor)
Douro, Faina Fluvial, 1931 (Documentário)
Hulha Branca, 1932 (Documentário)
Estátuas de Lisboa, 1932 (Documentário inacabado)
A Canção de Lisboa, Cottinelli Telmo, 1933 (actor)
Miramar, Praia das Rosas, 1938 (Documentário desaparecido)
Portugal Já Faz Automóveis, 1938 (Documentário)
Famalicão, 1940 (Documentário)
Aniki Bóbó, 1942
Exposição Heráldica do Trabalho, Perdigão Queiroga, 1956 (Documentário, fotografia)
O Pintor e a Cidade, 1956 (Documentário)
Imagens de Portugal 105, António Lopes Ribeiro (Actualidades, fotografia)
A Rainha Isabel II em Portugal, António Lopes Ribeiro, 1957 (Documentário, fotografia)
O Coração, 1958 (Inacabado)
O Pão, 1959 (Documentário)
Acto da Primavera, 1962
A Caça, 1963
Vilaverdinho, 1964 (Documentário)
As Pinturas do Meu Irmão Júlio, 1965 (Documentário)
A Propósito da Inauguração duma Estátua (Porto, 1100 Anos), Lopes Fernandes, Artur Moura e A. Baganha, 1970 (Documentário, supervisão)
André, a Cara e a Coragem, Xavier de Oliveira, 1971 (montagem)
O Passado e o Presente, 1971
Sever do Vouga Uma Experiência, Paulo Rocha, 1971 (supervisão)
Benilde ou a Virgem Mãe, 1974
Deliciosas Traições do Amor, Domingos Oliveira, Tereza Trautman, Phudias Barbosa, 1975 (montagem)
Amor de Perdição, 1978
Conversa Acabada, João Botelho, 1981 (actor)
Francisca, 1981
Visita ou Memórias e Confissões, 1982 (só será exibido após a sua morte)
Lisboa Cultural, 1983 (Documentário)
Nice – À Propos de Jean Vigo, 1983 (Documentário)
Le Soulier de Satin, 1985
Simpósio Internacional de Escultura, 1985 (Documentário co-realizado com Manuel Casimiro)
Mon Cas, 1986
A Propósito da Bandeira Nacional, 1987 (Documentário)
Os Canibais, 1988
“Non” ou a Vã Glória de Mandar, 1990
A Divina Comédia, 1991
O Dia do Desespero, 1992
Oliveira, o Arquitecto, Paulo Rocha, 1993 (Documentário, entrevistado)
Vale Abraão, 1993
A Caixa, 1994
Viagem a Lisboa, Wim Wenders, 1994 (actor, participação especial)
O Convento, 1995
En Une Poignée de Mains Amies, 1996 (Documentário co-realizado com Jean Rouch)
Party, 1996
Viagem ao Princípio do Mundo, 1997
Inquietude, 1998
A Carta, 1999
Palavra e Utopia, 2000
Vou Para Casa, 2001
Porto da Minha Infância, 2001 (Documentário)
O Princípio da Incerteza, 2002
Momento, 2002 (Clip musical)
Um Filme Falado, 2003
O Quinto Império Ontem Como Hoje, 2004
Espelho Mágico, 2005
Do Visível ao Invisível, 2005
Belle Toujours, 2006
O Improvável Não é Impossível, 2006
A 15ª Pedra, Rita Azevedo Gomes, 2006 (Documentário, entrevistado)
Cristóvão Colombo – O Enigma, 2007
Rencontre Unique, 2007 (Segmento de Chacun Son Cinéma)
O Poeta Doido, o Vitral e a Santa Morta, 1965/2008 (Documentário)
A Vida e a Morte – Romance de Vila do Conde, 1965/2008 (Documentário)
Singularidades de Uma Rapariga Loura, 2009
O Estranho Caso de Angélica (em preparação)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Notícias da Cinemateca 2

Ontem, 14 de Dezembro, a Cinemateca exibiu na Sala Félix Ribeiro o documentário Cordão Verde. Obra contemplativa, tem nas paisagens serranas de Monchique e do Caldeirão e (em alguns) costumes locais os seus modestos trunfos.
Digo modestos, com sinceridade, porque o filme (aliás, o video) não consegue explorar a riqueza dos mesmos costumes locais que se propõe a fazer. A câmara à mão teima em não se aproximar do objecto cinematográfico, num registo que contempla tanto a paisagem como as práticas agrícolas, corticeiras, da confecção de queijos ou de destilaria.
Com todo o respeito pelos autores, há uma permanente acanhamento em fintar o lado contemplativo que se exigiria de quando em vez, pontuando a paisagem com retratos camponeses que assim ficam gorados, roçando o exercício de falta de humildade que, sinceramente, não acredito existir em Rossana Torres e Hiroatsu Suzuki.
Essa aproximação era exigível, se os realizadores quisessem de facto fixar a marca humana na paisagem. É desse tipo de imagens que vem a riqueza de um autor como António Campos, por exemplo, que em exercício de modéstia se colocava ao nível dos homens e mulheres que retratava, e com eles corria, suava, molhava ou sujava. E o lado contemplativo, frustrava-se? Não, enriquecia com o homem que trabalhava a terra, ou no caso de Campos, sobretudo lutava no mar.
Falha parece-me ser também, a forma como o trabalho é apresentado pela Cinemateca. Longe de mim querer beliscar as competências da equipa de programação, mas é verdade que o trabalho de casa não foi muito bem feito.
Toca-nos este aspecto em particular, uma vez que na folha de sala constavam as anteriores exibições da obra:
Panorama, Lisboa, Março de 2009
62º Festival Internacional de Locarno, Agosto de 2009
Festival Internacional de Toronto, Setembro de 2009
Viennale, Novembro de 2009
Qualquer das exibições coloca a obra, assim me esclareceram, no quadro de uma ante-estreia, tal como foi anunciado pela Cinemateca. Mas não ficaria mal fazer referência a uma das primeiras exibições. Falo, como é natural, da 10ª Mostra de Cinema Europeu de Tavira, Julho de 2009, cuja programação levou a efeito, segundo a lista, a 2ª exibição da obra.
Fica o reparo.
LG

Notícias da Cinemateca 1

A notícia vem da semana passada. Maria João Seixas, mulher da Cultura em Portugal, irá assumir a Direcção da instituição a partir de Janeiro, mantendo-se Pedro Mexia como subdirector.
A boa notícia, no entanto, estende-se para fora da Cinemateca, em sintonia com os objectivos anunciados. Segundo a imprensa, a nova Direcção pretende ter uma actuação pontuada pela criação de um pólo da Cinemateca no Porto, pelo desenvolvimento e dinamização da Cinemateca Júnior, pelo impulso na salvaguarda e preservação do material da RTP (para o qual vai servir a construção em curso de novos cofres climatizados), e ainda pela descentralização.
E neste último ponto, meus amigos, a notícia pode ser muito boa para os cineclubes. É verdade que a Cinemateca tem, como competência legal, a salvaguarda e preservação do património audiovisual português. É ainda verdade que, no que respeita à divulgação, a mesma se processa sobretudo nas salas de cinema da instituição, em número de três e todas em Lisboa. É verdade, ainda, que a Cinemateca se associa frequentemente a projectos de divulgação de património cinematográfico, ou mesmo em que a utilização desse património é pontualmente utilizado noutro tipo de iniciativas.
Todas estas verdades - e competências legais, repito - são o resultado de um trabalho de décadas, que fazem com que a Cinemateca Portuguesa seja um organismo dinâmico, presente no panorama (diário) da vida cultural, e um lugar apetecível e cobiçado por muito boa gente que ambiciona a Direcção, colocação que permite projecção pessoal certa.
Verdades que não apagam os pobres e ostracizados organismos, pequenas instituições preteridas num possível - e competente - apoio a iniciativas locais e regionais. Não se trata aqui de defender a lógica de distribuidora ou de videoclube, mas seria bom encontrar caminhos de colaboração, ainda que tenham que ser pontuais, concretos, diversificados e não frequentes.
Cineclubes, esta pode bem ser a oportunidade para uma dinamização destas pequenas instituições e, por consequência, das localidades e regiões onde se inserem.
À vossa espera, têm uma Direcção apostada no compromisso entre a continuidade e o refrescar de idéias. A partir de Janeiro, a ver vamos...
LG

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

As Ruas do Rui

Há uma cidade de Lisboa, produto de uma sociedade que transforma a capital portuguesa num centro comercial de consumo desenfreado, em crescendo, como se a crise anunciada e confirmada fosse um assunto para preocupar apenas o próximo. Neste ambiente vive sobretudo a Lisboa dos meses de Novembro e Dezembro, que esvazia o recheio das lojas dos produtos natalícios que fazem as delícias superficiais dos compradores furiosos.
Numa outra Lisboa, muito mais séria, cruzam-se histórias amargas de pessoas vencidas pelo álcool, pela droga, pela miséria. Nestas ruas, onde o Natal é não mais do que apenas uma data, há (como se lê na sinopse de Ruas da Amargura), "homens e mulheres, de todas as idades, com carências afectivas, financeiras, problemas mentais", com origem em Portugal ou que para cá vieram à procura de melhor vida. Estas pessoas têm nos voluntários - sublinho voluntários - uma ajuda com ar de assistência social e psicológica que faz o que pode, vítimas nas suas nobres intenções da mesma sociedade que em frémito consumista se alheia destas histórias de vida.
Rui Simões visita essas ruas, as da amargura, e visita também as histórias, dando-lhes um rosto, uma voz, uma emoção, num documentário produzido no âmbito do Ano Europeu do Combate à Pobreza e Exclusão Social 2010.
Documentarista de há muito tempo, Rui Simões é um dos "senhores documentaristas" do Cinema Português. Em 2006 acompanhou a revisitação de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, levado à cena pela companhia de teatro O Bando, documentando a noite de estreia e todo o trabalho de produção, preparação e ensaios do espectáculo, num filme que se chamou Ensaio Sobre o Teatro.
Mas é sobretudo dos anos revolucionários que chegam as suas grandes obras. Em 1974 realiza Deus Pátria Autoridade, título que remete para uma resenha do timbre salazarista da ditadura, desconstruindo a sua ideologia, ao mesmo tempo que passa em revista o século, desde a queda da monarquia.
Data de 1980 aquela que, em nossa opinião, é a sua melhor obra: Bom Povo Português. Este filme retrata os tempos do PREC, desde o 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975, equiparando a primeira data a um nascimento e a segunda a uma enterro - da revolução. Grande e grandiosamente sustentado por imagens de arquivo (tal como o anterior), é também o mérito da montadora Dominique Rolin que sustenta a sua eficácia, filme que só foi possível graças às imagens que muitos profissionais do cinema tinham na sua posse. Foi uma época em que "toda a gente" andava na rua a filmar o que acontecia no âmbito das convulsões políticas, incluindo a RTP, que comprometidamente boicotou esta obra, não cedendo imagens do seu arquivo. Outros tempos...
Estes dois documentários são de inegável valor histórico e informativo para se perceber o Portugal de então - e mesmo o de hoje. E a propósito, não será por acaso que Rui Simões escolhe um tema como o do filme Ruas da Amargura, obra que veremos amanhã no nosso Cineclube.
LG