quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Cinema Português 5: António Campos

Caso raro (para não dizer único) do cinema português, António Campos é o protótipo de realizador que segue a via do cinema documental, não obstante ser uma escolha frequente dos nossos cineastas por impossibilidade de rodar ficções, fenómeno que atravessa a obra de muitos casos no nosso país.
Evidentemente, está fora de questão a qualidade do cinema de António Campos, um cineasta amador de perfil e craveira profissionais. Da escola de Leiria onde trabalhava até à Fundação Calouste Gulbenkian, o seu cinema é marcado por um apego ao emprego, âncora para a sua vida de escassos recursos. É em Leiria que roda as suas primeiras obras, depois de muitos filmes de família que preferia não adicionar à sua filmografia.
O Senhor e Um Tesoiro, ainda na década de 50, são testemunhos de dois aspectos. Primeiro, o de uma forte marca deixada na sua vida pela experiência de convívio com o mar (como aliás será constante ao longo da sua obra), no olhar para um caso de vida de dificuldades sociais e humanas, ao filmar Um Tesoiro na Praia da Vieira. Em segundo lugar, filmado (nos então) arredores da cidade de Leiria, a linguagem cinematográfica que foi capaz de construir desde a primeira obra, através da montagem paralela e até uma sugestão da "eisensteiniana" montagem de atracções, ao filmar O Senhor. Neste pequeno filme, o nascimento de uma nova vida é pontuado ritmicamente pelo girar das pás de um moinho de vento e da respectiva moagem do cereal.
O cineasta Paulo Rocha foi quem primeiro reparou e apostou neste cineasta que muito trabalhou a etno-ficção por si designada. A sua riqueza provém do facto de se colocar modestamente ao nível do objecto filmado, desprezando uma atitude superior, erro em que muitos documentaristas teimam em cair.
Este aspecto é válido, tanto para os vários documentários de carácter etnográfico que rodou, como também é verdade no caso da sua longa-metragem Terra Fria, 1992, filme em que as "profundezas" das serras trasmontanas e aqueles que elas escondem não deixam de constituir uma abordagem de carácter etnográfico.
É com esta atitude que lhe é possível filmar, em 16 mm, o documentário Almadraba Atuneira, na antiga Ilha da Abóbora em Cabanas de Tavira. Em vários exemplos que se podem apontar de registo cinematográfico da pesca do atum, nenhuma delas tem a profundeza do filme de António Campos. Nenhuma delas foca tão honestamente a árdua labuta que antecede a deita de uma armação ou a própria deita.
Da mesma forma, António Campos foi o único capaz de observar pessoalmente os pescadores e o seu lado privado, como demonstram o olhar sobre as bagagens das famílias, com colchões, camas de grades desmanchadas ou a máquina de costura. Entra na intimidade do gesto, do pescador que ao colo carrega a mulher ou o bébé, à idosa que costura na penumbra da habitação.
Um filme simbólico para Tavira e sobretudo para Cabanas, um hino aos pescadores da Abóbora, a uma actividade desaparecida, ao ciclo da vida, acompanhado pela Sagração da Primavera de Igor Stravinsky.
Foi o primeiro filme "a sério" de António Campos, o mais honesto dos documentaristas portugueses.
LG
Filmografia:
Um Tesoiro, 1958
O Senhor, 1959
Leiria 1960, 1960
A Almadraba Atuneira, 1961
Exposição Comemorativa do Nascimento de Debussy, 1962
A Arte Portuguesa Contemporânea, 1963
Obras da Gulbenkian - 1ª Fase das Obras, Desaterro Muro Periférico, Parque de Estacionamento, 1963
Exposição de Instrumentos Musicais Populares Portugueses, 1964
La Fille Mal Gardée, 1964
Obras da Gulbenkian - 2ª Fase das Obras Construção do Museu, 1964
Obras da Gulbenkian - 2ª Fase das Obras Construção do Auditório, 1964
A Invenção do Amor, 1965
Ouros do Peru, 1965
Retratos dos das Margens do Rio Lis, 1965
Um Século de Pintura Francesa, 1965
Arte do Índio Brasileiro, 1966
Chagall - Breve a Lua, Lua Cheia, Vai Aparecer, 1966
Mudar de Vida, 1966, Paulo Rocha (Assistente de Realização)
Colagem, 1967
Construção do Centro de Biologia de Oeiras da Fundação Calouste Gulbenkian, 1967
Arte Portuguesa - Do Naturalismo aos Nossos Dias, 1968
Entrega de um Busto de Luís de Camões, 1968
O Principezinho, 1968
Obras da Gulbenkian - 2ª Fase das Obras, Construção da Sede, 1969
Recordando - Obras de Construção da Sede, do Museu e do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, 1969
Museu da Gulbenkian, 1970
Raul Lino, 1970
Arte Francesa Depois de 1950, 1971
Vilarinho das Furnas, 1971
Portugal e a Pérsia -Exposição Integrada no Âmbito das Comemorações do 2500 Aniversário da Fundação da Monarquia no Irão, 1972
Rodin, 1973
Falamos de Rio de Onor, 1974
A Festa, 1975
Gente da Praia da Vieira, 1975
Património Arquitectónico Português, 1976
Ex-Votos Portugueses, 1977
Histórias Selvagens, 1978
À Descoberta de Leiria, 1987
Terra Fria, 1992
A Tremonha de Cristal, 1993

Sem comentários: