quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

As Ruas do Rui

Há uma cidade de Lisboa, produto de uma sociedade que transforma a capital portuguesa num centro comercial de consumo desenfreado, em crescendo, como se a crise anunciada e confirmada fosse um assunto para preocupar apenas o próximo. Neste ambiente vive sobretudo a Lisboa dos meses de Novembro e Dezembro, que esvazia o recheio das lojas dos produtos natalícios que fazem as delícias superficiais dos compradores furiosos.
Numa outra Lisboa, muito mais séria, cruzam-se histórias amargas de pessoas vencidas pelo álcool, pela droga, pela miséria. Nestas ruas, onde o Natal é não mais do que apenas uma data, há (como se lê na sinopse de Ruas da Amargura), "homens e mulheres, de todas as idades, com carências afectivas, financeiras, problemas mentais", com origem em Portugal ou que para cá vieram à procura de melhor vida. Estas pessoas têm nos voluntários - sublinho voluntários - uma ajuda com ar de assistência social e psicológica que faz o que pode, vítimas nas suas nobres intenções da mesma sociedade que em frémito consumista se alheia destas histórias de vida.
Rui Simões visita essas ruas, as da amargura, e visita também as histórias, dando-lhes um rosto, uma voz, uma emoção, num documentário produzido no âmbito do Ano Europeu do Combate à Pobreza e Exclusão Social 2010.
Documentarista de há muito tempo, Rui Simões é um dos "senhores documentaristas" do Cinema Português. Em 2006 acompanhou a revisitação de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, levado à cena pela companhia de teatro O Bando, documentando a noite de estreia e todo o trabalho de produção, preparação e ensaios do espectáculo, num filme que se chamou Ensaio Sobre o Teatro.
Mas é sobretudo dos anos revolucionários que chegam as suas grandes obras. Em 1974 realiza Deus Pátria Autoridade, título que remete para uma resenha do timbre salazarista da ditadura, desconstruindo a sua ideologia, ao mesmo tempo que passa em revista o século, desde a queda da monarquia.
Data de 1980 aquela que, em nossa opinião, é a sua melhor obra: Bom Povo Português. Este filme retrata os tempos do PREC, desde o 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975, equiparando a primeira data a um nascimento e a segunda a uma enterro - da revolução. Grande e grandiosamente sustentado por imagens de arquivo (tal como o anterior), é também o mérito da montadora Dominique Rolin que sustenta a sua eficácia, filme que só foi possível graças às imagens que muitos profissionais do cinema tinham na sua posse. Foi uma época em que "toda a gente" andava na rua a filmar o que acontecia no âmbito das convulsões políticas, incluindo a RTP, que comprometidamente boicotou esta obra, não cedendo imagens do seu arquivo. Outros tempos...
Estes dois documentários são de inegável valor histórico e informativo para se perceber o Portugal de então - e mesmo o de hoje. E a propósito, não será por acaso que Rui Simões escolhe um tema como o do filme Ruas da Amargura, obra que veremos amanhã no nosso Cineclube.
LG

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