Vem esta entrada a propósito da nova composição da Direcção da Cinemateca (José Manuel Costa e Rui Machado). Chegou-nos há dias um texto de Manuel S. Fonseca, antigo responsável pela programação da instituição e colaborador da revista Atual, do jornal Expresso, onde assina a rubrica O Cinema Dá o Que a Vida Rouba.
Partilhamos o texto, pequena anedota cinéfila (anekdotos = pequena história sem motivo de referência histórica).
LG
Monsieur Hulot no Pap'Açorda
Não há maior distracção do que a de Deus criar o Mundo. Deus é uma espécie de Peter Sellers, e o mundo, como bem sabemos, não é diferente do "The Party" de Blake Edwards. Mas João Bénard, mítico director da Cinemateca e quem primeiro levou a vetusta Gulbenkian a ver um filme, era tudo menos Peter Sellers. As hiperbólicas distracções dele estavam entre o Cary Grant de "Bringing Up Baby" e o Jacques Tati de "Les Vacances de Monsieur Hulot".
O Pap'Açorda já entrara no século XXI e conservava a mesma gloriosa mousse de chocolate do século XX. A uma mesa, sentavam-se o João Bénard e o marginalíssimo realizador alemão Werner Schroeter. Os dois de costas para a entrada, e via-se que esperavam alguém. A vigiar a porta, um colaborador a quem o João pediu para o avisar mal entrasse Isabelle Hupert.
Era por ela, a filmar em Lisboa, que esperavam. Quando a ansiedade é muita, antecipa-se o que se deseja ver e o colaborador disse a João: "É ela". O João deu um salto à João, perdão, à Monsieur Hulot e correu, como Cary Grant, para a porta. Já não ouviu o colaborador aos gritos "Ah, não é, desculpe, não é ela."
"Isabelle", dizia o João à senhora a quem beijava as mãos, "mais quelle honneur...". Surpreendida, tão honrada como embaraçada, a senhora num límpido português pré-acordo ortográfico, só respondia: "Ó João, mas o que é que lhe deu?" Inabalável, sem saber que estava a protagonizar uma das suas mais lendárias gaffes, o João Bénard continuou a elogiar a imaginária Huppert: "Et en plus vous parlez portugais." Era, aliás, a única coisa que a senhora falava: "Que disparate, João, porque é que não havia de falar português!"
O João Bénard percebeu, então, que a senhora era uma velha amiga, apesar de, por tanto ter a Huppert na cabeça, nem do nome dela se conseguir lembrar. Embrulhou-se em desculpas e voltou para a mesa com um homérico ataque de riso.
Era o João a estranhar, entre gargalhadas convulsas, não conseguir lembrar-se do nome da amiga, e era o Schroeter a avisá-lo: "Não diga à Isabelle Huppert que a confundiu com uma mulher que deve ter mais vinte anos do que ela. Acabamos em tragédia o que agora começou em comédia." E a Huppert nunca soube o quanto Monsieur Hullot se riu antes de ela chegar.
(Atual, 1 de Fevereiro de 2014)
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