Com os cortes anunciados para financiamento das industrias culturais deste pobre país, os profissionais do sector procuram fazer ver ao Governo que a produção cultural é, e neste caso a produção de cinema, dos produtos mais exportados por este pobre e pequeno canto da Europa, da União Europeia, do Mundo.
No jornal Público do último dia 9 de Julho, o decano dos cineastas portugueses veio a terreiro em defesa da classe, publicando uma carta aberta à Ministra da Cultura. No texto Defesa do Cinema Português, Manoel de Oliveira demonstra como o financiamento de filmes é vantajoso para o país e as suas pobres finanças (com letra pequena, perdoe-nos o titular da pasta).
O abafador, sinistra personagem que nas aldeias se encarregava de poupar os moribundos a maiores agonias, vem agora ser recordado a propósito da administração da Zon/Lusomundo, que "esconde os nossos filmes", que os guarda, que não os mostra nem deixa mostrar. A empresa é detentora dos direitos de exploração de significativa parte do cinema português, e nada faz para promover os filmes. Não os edita, não os exibe, não os divulga na sua rede de televisão por cabo, não nada. Apenas abafa.
Deste modo, é na administração da Zon/Lusomundo e dos seus salários - entre outros, "à parte" nosso - que o prejuízo com Cinema se faz neste país.
Não é prejuízo querer fazer cinema e com isso promover culturalmente um país.
Não é com o único laboratório de cinema em Portugal, que vive sob o fantasma do encerramento definitivo, que se tem prejuízo.
Não é prejuízo dar meios a quem tem competências para a salvaguarda do património cinematográfico português; e que por acaso também tem por missão a sua divulgação, por mais criticada que possa ser.
Mas o melhor é dar uma vista de olhos ao texto de Manoel de Oliveira. No filme Sound of Music de Robert Wise, 1965, cantava-se "I am sixteen / Going on seventeen", com um futuro sorridente como perspectiva. Oliveira escreve com a elegância dos seus 101 anos, going on 102. And counting, and thinking, and making films, and exporting them, and promoting the portuguese culture, and colecting international prizes...
LG
Defesa do Cinema Português
Por Manoel de Oliveira
Senhora ministra, peço-lhe que pense bem nos problemas que estamos a viver, de modo a encontrar soluções eficazes e justas.
Em defesa dos realizadores e dos produtores de filmes portugueses neste difícil momento por que estão a passar, em defesa desta boa causa, tenho a dizer o seguinte:
Os filmes portugueses nunca foram ruinosos para o país e os seus custos cremos serem os mais baixos em relação à maior parte dos países. É certo que o momento é de crise, mas o cinema português está longe de ser motivo de ruína para o país e exactamente pelo seguinte:
Cada um dos nossos filmes move um grupo de actores, outros tantos figurantes e uma equipa técnica completa.
Este conjunto de contratados mexe com transportes, com restaurantes, com hotéis, etc., etc. E toda esta gente, com aquilo que ganha, faz as mais variadas compras com esses pequenos ganhos do seu trabalho, e isto, para além dos gastos que as próprias filmagens são obrigadas a fazer para produzir cada um dos seus filmes.
Mais: todos, seja dentro ou fora do filme, pagam impostos e esses impostos, feitas as contas, serão montantes aproximados, se não iguais ou até superiores, ao subsídio que o Ministério da Cultura dá para cada um desses filmes. O que quer dizer que o Estado vem a cobrir ou até a receber mais do que os subsídios que atribui a cada filme.
E quero dizer ainda:
Depois os filmes passam a ser exibidos no país, e quantas vezes vendidos para diferentes outros países, alguns dos meus filmes já passaram por esse mundo fora, em cerca de 27 países, bem como acontecerá com outros colegas, dando a conhecer as nossas expressões cinematográficas e culturais, uma vez que o cinema figura como uma síntese de todas as artes; para além de representar um reforço nos lucros dos produtores, lucros esses favoráveis ao país, como acontece com os livros, com a pintura ou com a música.
Assim como as televisões nacionais mostram aos seus países o essencial do que se passa no mundo, o cinema nacional divulga a cultura de cada país ao mundo.
Nunca senti ser um "peso" para os governos do meu país. Limito-me a fazer o meu trabalho o melhor que sei e posso para o que sinto ter nascido, tentando questionar os seres, as coisas, a nossa história e o mundo através dos filmes que tive o privilégio de realizar. No tempo da ditadura, fui fazer um curso de fotografia em Leverkusen, oferecido pela Bayer, nos seus estúdios da Agfa. A seguir, fui para Munique, onde comprei na Arnold Richter uma câmara de filmar. Montei numa carrinha tudo o necessário de imagem e som para filmar em qualquer lugar e fiz o primeiro filme a cores revelado pela Tobis Portuguesa: O Pintor e a Cidade que ganhou o meu primeiro prémio no Festival de Cork, a Harpa de Prata. E a seguir filmei sozinho mais quatro filmes, incluído o Acto da Primavera, o único para o qual recebera uma ajuda do SNI, por se tratar de um filme religioso e para o qual tive como meu assistente o malogrado António Reis.
Senhora ministra, peço-lhe que pense bem nos verdadeiros problemas que estamos a viver, de modo a encontrar soluções eficazes e justas. Não pergunte quanto ganha um cineasta que por vezes trabalha durante dois anos debruçado repetidas vezes sobre o arranjo do seu guião para o ajustar ao seu reduzido custo de produção, como fora o caso de alguns filmes e em particular do Estranho Caso de Angélica. Nós, realizadores, não temos direito a qualquer reforma. Cada realizador ganha o seu salário só quando filma, sem garantia nenhuma de continuidade. Não pergunte quanto ganha um actor ou um bailarino. Calculo que sabe que não é muito e que a sua derradeira glória poderá vir a ser a de morrer pobre. Pergunte sim, por exemplo, quanto aufere o administrador da Lusomundo/Zon, o abafador, aquele que esconde os nossos filmes, e que não responde mais depois de se assegurar com um contrato, e que não responde nem a nós nem a quem quer ver e mostrar os filmes portugueses.
Neste momento difícil, penso sobretudo nos meus colegas realizadores mais jovens. Para eles, estes cortes são profundamente injustos. E penso que, como eu, eles não podem viver sem uma Cinemateca Nacional forte que possa mostrar, hoje e todos os dias, o que é a história do cinema. Não podem viver sem um laboratório de imagem e de som, como o da Tobis, onde há mais de setenta anos faço os meus filmes. Eles precisam de uma lei do cinema que efectivamente proteja o cinema português. E precisam de ser ouvidos para isso. Eles, como eu, sempre viveram na precariedade e na insegurança, sem reforma nem subsídio de desemprego, e sem nunca sabermos se não estaremos a fazer o nosso último filme. Eles, como eu, só temos um desejo: todos ambicionamos morrer a fazer filmes.
Realizador
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